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Cego Oliveira - Textos do Disco Duplo 'Cego Oliveira - Rabeca & Cantoria'

Cego Oliveira


Foto: Capa do disco duplo 'Cego Oliveira - Rabeca & Cantoria'. Foto de Cego Oliveira por Ricardo Tilkian.

Textos do Disco Duplo 'Cego Oliveira - Rabeca & Cantoria' (1992)

Cego Oliveira - Rabeca & Cantoria: Participação Especial Zé Oliveira

SAGRADA PAIXÃO

"Bem, meus senhores, não vou contar para "vosmecês", nem toda a minha vida e nem todo o meu sofrimento. Dou uma explicação... Meus pais eram José Cazuza e Maria Ana da Conceição, eram alagoanos e vieram para Juazeiro em 1904. Chegando aqui foram morar no sítio Baixio Verde, mas meu batizado foi em Juazeiro e quem me batizou foi o meu Padrinho Cícero. Quer dizer que eu sou de Juazeiro, que no lugar onde a gente se batiza é que é o natural da gente.

"Nasci cego e fui me criando no sofrimento, na obrigação de pedir esmolas, o que eu achava muito ruim... Pedi a Deus que me desse uma luz, um seguimento, para eu deixar esta vida de porta em porta. Quando foi no ano de 1929 um tio meu comprou e me deu uma rabequinha. Bem, eu fui tentando, tentando, comecei a aprender... Aí Nosso Senhor me deu este dote de eu pegar em cantoria. Meu irmão sabia assinar o nome e lia para mim os versos dos "rumances". Lia uma quadra e eu decorava, lia outra quadra e eu decorava... Aí cheguei a cantar mais de 75 "rumances"... Primeiro aprendi os versos do "Preguiçoso", depois desembestou: "Princesa Rosa", "Pavão Misterioso", "Negrão André Cascadura", "João de Calais", "Zezinho e Mariquinha", "Juvenal e o Dragão", "O Capitão do Navio", "Coco Verde e Melancia", "A Peleja do Zé Pretim com Cego Aderaldo"... Era um mundo de poesia. Aprendi também muitas cantigas bonitas. Eu aprendia com o povo, nesse tempo não tinha rádio e essas coisas modernas que tem hoje. O povo cantava e eu aprendia. Tinha muita música bonita, de amor, de gracejo, de causos de valentia, de reinos encantados... Essas músicas navegavam no mundo. Eu toquei muito nos "Reisados", depois perdi o gosto... Um menino que eu tinha brincava nos "Reisados", quando foi um dia ele morreu e eu perdi o gosto pelos "Reisados".

Eu também tinha muito interesse em tocar "pife". Quando eu ia para uma festa, a coisa mais bonita que eu achava era uma banda cabaçal. Eu me interessei e aprendi a tocar "pife", eu tocava o tempo todo, chegava a tocar um dia mais uma noite. Mas depois eu peguei mesmo foi na vida da cantoria, com a rabeca... Comecei a cantar nas feiras, em todo lugar onde eu fosse convidado. Eu cantava em casamento, em batizado, em aniversário, em festa de renovação dos Santos e até em sentinela de defunto... O defunto estirado na sala e a gente arrodeado, cantando... Eu achava era bom uma sentinela. O povo tomava muita cachaça, era a noite inteira à custa de cachaça para agüentar a função. As "incelença" eram assim:

"Uma incelença
Nossa Senhora das Dores
Os anjos lá no céu
Estão cantando luvores;
Só foi quem mereceu
Esta capela de flores".

"Duas incelença
Nossa Senhora das Dores (...)"

Cantava até completar as doze "incelença".

A vida do cantador foi a melhor que eu já achei, porque trabalhar no pesado eu não posso, pegar no alheio eu não vou. Assim, vou cantando... É como eu digo:

"Essa minha rabequinha
É meus pés, é minha mão
É minha roça de mandioca,
É minha farinha, o meu feijão,
É minha safra de algodão,
Dela eu faço profissão
Por não poder trabalhar,
Mas ao padre fui perguntar
Se cantar fazia mal.
Ele me disse: Oliveira,
Pode cantar bem na praça,
Porém se cantar de graça
Cái em pecado mortal"

Quando eu era novo era bom demais. Eu chegava numa festa e me juntava mais os companheiros, a gente tocava rabeca, "pife" e zabumba... Bebia cachaça e pintava o sete. Eu cantei com muitos cantadores afamados do sertão. Uma vez o poeta Zé Mergulhão tava me aperriando numa cantoria, com os versos malcriados querendo me encourar... Então eu cantei:

"Poeta Zé Mergulhão
Você procure a defesa,
Eu lhe dou a explicação
Com toda delicadeza,
Eu com a rabeca na mão,
Eu canto por precisão
E você por sem-vergonheza".

Hoje eu estou ficando velho, ficando distraído das coisas. Já esqueci muitos versos... A profissão hoje em dia não dá mais pra quase nada, a gente quase não recebe mais encomenda de cantoria. Ainda canto um pouquinho nas romarias, enquanto houver romaria eu ganho um pouquinho que dá para viver. Antes de chegar esses programas de rádio, esses violeiros modernos, eu era convidado para tudo que era canto, pra toda a região. Tinha dia de sábado para eu ser convidado para quatro casamentos e não dava vencimento... Essas cantorias de rádio foi quem derrubou eu e muitos outros cantadores como eu.

Na profissão de cantoria eu já viajei pra São Paulo, pro Rio de Janeiro, pra Fortaleza... Eu já cantei na televisão, mas ao invés de melhorar ficou pior. Quando é no tempo de romaria, eu tou tocando a minha rabequinha, aí chega um romeiro, fica olhando e diz: "– Ah!, esse cego aí eu já vi, ele passou na televisão. Não dê esmola a ele que ele é rico, ele vive passando na televisão.

Pois bem, e o pobre do besta aqui passando necessidade. Eu passo é de um ano sem ver um pedaço de carne no prato.

A vida, no meu entendimento, é esta luta que a gente leva. Deus é todo-poderoso e é quem manda no destino de todos nós. Eu acredito na vida do outro mundo, mas ninguém sabe como é... Agora, o que eu digo é o seguinte: do céu não vem carta, nem telegrama, nem telefone pra ninguém.

Uma vez eu fui cantar num casamento, quando foi na hora de eu esbarrar a cantoria, eu cantei uma "despedida" tão bonita que, quando terminei, uma mulher disse:

– Faz pena um "home" desse ter que morrer um dia.

Mas eu não tenho medo da morte, não tenho um "tico" de medo da morte. Não tenho medo da morte e nem medo de deixar o mundo. Eu não tenho o que deixar... Se eu morrer é como se diz:

"Eu vou me embora
Vou cantar 'gulora'..."

Cego Oliveira.

(Depoimento ordenado a partir de entravistas concedidas para o filme 'Cego Oliveira - Rabeca & Cantoria' do ceneasta Rosemberg Cariry)

O TOM DA SABEDORIA

Há muitos anos, ouvi Pedro Oliveira cantar que a sua rabeca era tocada conforme o "tom da sabedoria". Tal expressão ficou gravada na memória, por enunciar conceito difícil de se aprender, mais sugerindo um enigma e encerrar símbolos e mistérios da natureza popular. Não sabendo defini-lo logicamente, a imprecisão deste jogo poético de palavras me serviu de centelha, puro "insight", ao repensar o artista e o que ele representa, com rústico instrumento, dentro do caldeirão cultural da mística Juazeiro do Norte. Não me refirmo somente aos versos e ritmos de benditos e romances que desfia em feiras da cidade, onde foi parar ainda menino. A imagem também atrai a visão de seu rosto queimado de sol, no qual, além do vago olhar cego, ressaltam-se as rugas profundas. São marcas do tempo, de uma história entrelaçada ao saber de tantos peregrinos que passaram ou que foram ficando os pés nas terras, calçadas, templos, santuários e escadarias da vila desenvolvida sob o mito Padre Cícero.

O "tom da sabedoria" talvez seja a mágica ativada por seu arco nas cordas da rabeca, gesto a liberar sons e palavras, tradutores musicais de fragmentos de complexa, contraditória e convulsiva realidade cultural daquele pedaço de Nordeste. Registrar em disco esta mágica também requer esforços da mesma natureza. Quase nada existe de Pedro Oliveira em vinil. Desde foi lançada a trilha de "Nordeste - Cordel, Repente, Canção" (filme dirigido por Tânia Quaresma, em 1975), onde ele tem duas faixas extraordinárias, muita gente ficou ansiando por gravação mais completa da sua obra. Lembro que "Romance de João de Calais" e "Nas Portas dos Cabarés" impressionaram ouvidos que cultivaram outros gostos, importados, inclusive. Adeptos do blues norte-americano, familiarizados com discos que resgatavam raízes deste gênero, não entendiam poe que nossos menestréis, mestres de rica tradição musical, não mereciam idêntica valorização histórico-documental. A questão, assim, não ficava circunscrita a nostalgias rurais, a apegos folclóricos ou buscas exóticas de urbanóides entediados. Era algo mais concreto a propósito do elementar autoconhecimento, o nosso saber puro e simples.

O presente album de Pedro e Zé Oliveira é um sonho alimentado há muitos anos por Rosemberg Cariry. Dá seqüência não somente ao seu trabalho em livro e em cinema, sempre voltado à e à história da região, mas também põe à frente o projeto de registro da poética e dos cantos populares nordestinos, iniciado com discos de Patativa do Assaré e de Geraldo Amâncio & Oliveira de Panelas, lançados pelo mesmo selo.

A gravação destes rabequeiros chega em boa hora, quando penetramos em lodaçal mediocrizante, num país cuja identidade cultural é confiscada; nação que não se enxerga e que na atual redescoberta da canção dita rural arrisca ser a cópia tosca da matriz-country Nashville - um decalque, enfim, estampado numa indigente face de Terceiro Mundo.

Firmino Holanda
Crítico de Cinema

OLIVEIRA, RABECA E JUAZEIRO

Pelo mestre eu reinvento o martelo
Que eu ouvia nas tardes das calçadas
Nas igrejas de vozes franciscanas
Oliveira, Rabeca e Juazeiro
Um trovão acendendo pela vida
Na bacia e esmola dessa raça
Se a traça roesse a hipocrisia
Oliveira seria um herói
Do que ouvi e hoje guardo na memória
Panteão da cultura brasileira
Viva nossa história ancestral
Viva a lua que o rato não roeu
A garganta que o Cego mereceu
Oliveira só canta desse jeito
Quando para Oliveira cai o pano
Nos noventa de um Cego Alagoano

Calé Alencar
(Cantor e Compositor)


O TROAR ROUCO DA RABECA

Bramido da terra se partindo.
Negra luz parida
Das entranhas cegas
De seus olhos. Na garganta
O trovão reboante de quatro séculos
O ronco do sertão desentranhado.
Força terrível da matéria animada
Cego cantador de feira
Oliveira:
Mais terrível Ferrabrás

Oswald Barroso
(Escritor e Teatrólogo)

CANTO E CANDEIA

Entre o espanto e a fascinação, Cego Oliveira já povoava o mágico tempo da minha meninice no Cariri. Este álbum é a concretização de uma promessa e de um antigo sonho. É muito e é pouco. É muito porque registra-se um pouco do cancioneiro popular cearense, através do talento e do timbre de Cego Oliveira. É pouco porque fica faltando o muito de canções e romances guardados na memória do velho Mestre.

Mestre Oliveira, cantador de feira e pedidor de esmolas, o canto escancarado de um povo, a voz rouca e forte cantando os amores e as misérias desta Terra-Siará. A rabeca rústica, arrancando sons do fundo do tempo, de perdidas culturais, de inumeráveis raças; vivo elo que se manteve através dos séculos e encarnou o destino de um povo que teima na resistência, na luta contra os dragões de todas as misérias.

Cego Oliveira, um imenso coração onde foi depositado, por voto de amor e confiança, o cancioneiro popular, a criação artística do povo, a saga e a história do Nordeste - "Verdade e Imaginação". As vezes cantigas tristes e ingênuas, d'outras a ferida exposta do sofrimento, labuta e da rebeldia; muitas vezes os mistérios e os portentos da religiosidade dos deserdados filhos da terra. Oliveira é um Mestre. Quando fala ou canta, a vida e a paixão se fazem presença. Quando cala, ninguém consegue contar os punhais de luz escondidos em seu silêncio. Deste olhos cegos a candeia que ilumina as cantorias e os desafios, o gume afiado dos repentes. Neste rosto as rugas, como um mapa, indicando as trilhas da vida e da sabedoria.

Rosemberg Cariry
(Escritor e Cineasta)

DISCO 1

LADO A

1. Asa Branca (2:15)
2. Leva Eu Corina (3:02)
3. Maria José (2:21)
4. Sereno de Amor (3:01)
5. Morena Bota a Barca n'Água (2:25)
6. São José Também Chorou (2:26)

LADO B

1. Choro da Cabritinha (2:08)
2. Ai, Lampião, Cadê tua Muié? (2:12)
3. Minha Rabequinha (2:47)
4. Bendito de N. S. das Dores (2:51)
5. A Revolta de São Paulo (3:20)
6. Despedida de Reisado (1:47)

DISCO 2

LADO A

1. Acorda Maria, Acorda (4:11)
2. Lampião (3:03)
3. Bendito de N. S. das Candeias (2:49)
4. Bendito de N. S. do Socorro (2:21)
5. Essas Mocinhas de Hoje (2:55)

LADO B

1. Severina (3:35)
2. Águas Caririzeiras (1:33)
3. Arraiá (2:14)
4. Anunciada (2:41)
5. Zabelê (2:15)
6. Adeus Pessoal (2:13)

(Músicas do Folclore Cearense)

FICHA TÉCNICA

Pesquisa, Produção e Direção Artística
Rosemberg Cariry
Assistentes de Produção
Teta Maia
Luiz Carlos Bizerril
Almiro Santos
Técnico de Gravação e Mixagem
Marcílio Mendonça
Capa e Arte-Final
Luiz Bernado
Audifax Rio
Elenilson
Fotos da Capa e contracapa
Ricardo Tilkian
Fotos - Cenas do Filme
Nirton Venâncio
Produção Gráfica
Luiz Bernado
Prensado na BGM Ariola - SP
Gravado no Pró-Áudio Studio
Fortaleza - Ceará - 1992
Patrocínio Cultural
GOVERNO DO ESTADO
SECRETARIA DA CULTURA E DESPORTO

Este álbum tornou-se possível graças ao apoio do Governador CIRO GOMES
e do Secretário de Cultura AUGUSTO PONTES.

CARIRI Produções Artísticas Ltda. M.E.

Fonte:

Mais informações:

http://caririfilmes.com.br/

Indice = 389

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